Ter domínio da língua portuguesa, tanto na escrita como em leitura, é um desafio para muitos brasileiros, principalmente entre os alunos de pedagogia. Um estudo recente feito pelo Núcleo Brasileiro de Estágios (Nube) revelou que 83,5% dos candidatos a vagas de estágio e aprendizagem são reprovados em processos seletivos por apresentarem conhecimento gramatical insuficiente. Especialistas atribuem o resultado à baixa valorização do ensino básico e a desmotivação dos estudantes nas escolas.
A pesquisa divulgada em maio deste ano, analisou o desempenho de 59.776 concorrentes para uma vaga de estágio. Apenas 16,5% foram selecionados e os outros 83,5% foram desqualificados. A queda no desempenho escolar nos dois últimos anos, em decorrência das escolas fechadas na pandemia, mostrou um aumento de 67% de reprovação em relação ao último dado divulgado em 2019, quando o índice era de 50%.
Segundo a gerente de recrutamento e seleção do Nube, Helenice Accioly, o período da pandemia impactou mais ainda em um resultado que já não era tão bom em relação ao domínio do Português.
"Muitos jovens estudaram em casa e os professores não estavam tão preparados com a mudança. Em muitas reportagens foi mostrado a dificuldade do jovem em conseguir se concentrar e absorver todo o conteúdo. A pandemia tem muita relação no aumento do índice de reprovação e sabemos que a baixa no investimento da educação também contribuiu e veio a se agravar", disse.
Por outro lado, o professor Pedro Caldeira, diretor do Núcleo de Educação Básica da Associação Docentes Pela Liberdade, recorda que o péssimo resultado dos estudantes decorre, muitas vezes, em falhas no processo de alfabetização, que acabam prejudicando a aprendizagem do aluno nos anos seguintes, até chegar ao ensino superior. Ele lembra também que são poucas as escolas no Brasil que tentam recuperar essas deficiências. "Boa parte dos professores não usam métodos adequados que garantem o sucesso da aprendizagem nas salas de aula, são métodos falhos, principalmente na alfabetização. O esforço do país tem sido focado em garantir que todos estejam na escola, mas todos estarem na escola não significa que todos estão aprendendo", disse.
Estudantes de pedagogia entre os piores
Um dado que chamou a atenção na pesquisa diz respeito aos estudantes de Pedagogia, que têm como missão alfabetizar e ensinar crianças e jovens. Apenas 6,5% dos graduandos dessa área foram bem-sucedidos no levantamento.
"Esse é o dado mais preocupante porque estamos falando de estudante de Pedagogia que serão os futuros alfabetizadores do país. Eles foram os piores e são aqueles que no futuro irão alfabetizar as nossas crianças. Isso está tudo errado", critica Caldeira.
Entre os candidatos que disputaram as vagas, os estudantes do ensino médio ou técnico tiveram o pior desempenho, 89% dos 6,3 mil alunos não atingiram bons resultados no teste. Entre os universitários, os estudantes de Engenharia foram os que se saíram um pouco melhor, em comparação com os de Direito, Administração, Jornalismo e até mesmo, Letras.
Para Cláudio Amorim, professor do Ceub e mestre em Políticas Públicas e Avaliação da Educação, são muitos os fatores que podem explicar o baixo desempenho dos alunos em português. "Precisamos refletir que a nossa língua é uma das mais difíceis do mundo, com muitas regras e com algumas exceções a estas regras", disse.
"A escola precisa ser atrativa e dialogar com a realidade dos alunos. Os professores precisam ter uma melhor formação. O Estado precisa criar políticas públicas para fomentar a Educação, Cultura e melhorar as condições socioeconômicas. Não podemos pensar em um único ponto. São várias as variáveis", complementa Amorim.
Já Caldeira explica que o resultado poderia ser diferente se a alfabetização fosse mais valorizada no Brasil. "Muitos estudantes ficaram para trás em termos das aprendizagens das primeiras letras, deveriam ter sido utilizados métodos adequados, mas não são utilizados", disse.
O Brasil tem 11,3 milhões de analfabetos, uma taxa de 6,8% de pessoas acima dos 15 anos que não sabem ler ou escrever, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação de 2020. O país reduziu a analfabetização, mas não na velocidade esperada: ainda não alcançou a meta do Plano Nacional de Educação para 2015, que era baixar o índice para 6,5%, a fim de erradicar o analfabetismo até 2024.
Segundo os dados da última Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), realizada em 2016, mais de 50% das crianças, com até 8 anos, não adquiriram o conhecimento adequado para sua idade em português e matemática.
Com a pandemia nos últimos dois anos, o professor Amorim avalia que o impacto na alfabetização será muito maior. "Tivemos consequências no processo de alfabetização. As crianças que estavam no 2º ano (ano obrigatório para alfabetização) no ano de 2020 foram as mais afetadas. A maioria dos estados não retiveram os seus alunos durante estes dois anos, ou seja, os alunos foram progredindo, estando hoje no 4º ano, sem saber escrever", explica.
Em 2019, o Ministério da Educação (MEC) lançou a Política Nacional de Alfabetização, baseada em evidências científicas de como o cérebro aprende a ler. O programa inclui documento com diretrizes e pesquisas internacionais, plataforma online de aulas para professores com especialistas internacionais, classes para professores e pais de como alfabetizar (Tempo de Aprender), vídeo e games para crianças, entre outras ferramentas. A PNA, porém, ainda é rejeitada por muitos professores, escolas e universidades, que seguem abordagens construtivistas sem fase fônica ou desprezam testes de fluidez na leitura.
De acordo com o professor Caldeira, a rejeição se dá porque muitos docentes "estão mais interessado em questões ideológicas, em vez de analisar os fatos e aprender com os fatos, por isso continuam alfabetizar mal por esse processo. Como não querem aprender o novo método, as crianças são prejudicadas, e a maioria delas provenientes de famílias com poucos hábitos de leitura".
O documento da PNA, com 56 páginas, contesta o conteúdo das faculdades de Pedagogia, bem como o método de ensino dos professores, nos últimos 30 anos, ao prepararem os alunos para leitura, escrita e aplicação de cálculos básicos.
Caldeira ainda aponta que a precariedade na alfabetização das escolas públicas é a mesma do ensino particular. "A diferença [para melhor] está no hábito dos pais de alunos das escolas particulares que leem mais, porque os métodos estão errados nas duas", afirma.
Ler é o melhor caminho para o conhecimento
O hábito de ler ajuda compreender melhor o português mas esse é um hábito adquirido por apenas 52% da população brasileira. Entre 2015 e 2019, houve uma queda de cerca de 4,6 milhões de leitores, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil.
Helenice destaca que "a melhor maneira de ampliar o conhecimento de qualquer idioma é por meio da leitura". Para ela, a leitura tem que ser vista pelos estudantes como um prazer e não como uma responsabilidade.
"Na escola os jovens saem com a expressão que têm que ler livros que não gostam e eles podem ler livros do interesse deles. A maioria das pessoas não tem esse prazer e o gosto pela leitura, além disso as bibliotecas do ensino público não são muito boas e criam uma falta de incentivo", explica a gestora do Nube.
O professor Caldeira também vê a leitura como uma importante aliada no domínio da Língua Portuguesa. Porém, ele alerta para o tipo de leitura que vem sendo ofertado em muitas escolas brasileiras.
"Os pais estão preocupados com as leituras que os filhos fazem na escola, são livros que tem viés ideológico muito forte e livros que não são literatura. A preocupação é tão grande que alguns criaram um clube de leitura para os estudantes com livros selecionados e com objetivos didáticos e pedagógicos", declara.
Um estudo feito pela equipe de pesquisadores do Instituto Alfa e Beto (IAB) confirmou que quanto maior é a fluência de leitura, melhor é a compreensão do que se lê. Os estudantes do 2º, 3º e 4º anos do ensino fundamental que leem mais palavras por minuto e com maior quantidade de acertos tiram melhores notas em tarefas de compreensão. Os dados da pesquisa foram publicados na revista científica “Cadernos de Linguística”, da Associação Brasileira de Linguística.