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Se as avaliações diagnósticas realizadas pelas redes de ensino já apontavam dificuldades de aprendizagem da Língua Portuguesa pelos estudantes, uma pesquisa do Núcleo Brasileiro de Estágios (Nube) apresentou as consequências práticas desse problema — de 59.776 concorrentes a vagas de estágio e aprendizagem que tiveram seu desempenho analisado, 83,5% foram reprovados por apresentarem um conhecimento gramatical insuficiente. Em 2019, o índice era de 50%.

A pior performance identificada no levantamento foi entre os acadêmicos de Pedagogia — ainda que sejam os responsáveis por alfabetizar as crianças, por exemplo, 93,5% deles atingiram resultados abaixo do esperado em Língua Portuguesa. 

O segundo pior desempenho foi entre estudantes de Ensinos Médio e Técnico, com 89% de reprovados. Entre os alunos de Direito, 85,8% apresentaram deficiências, seguidos pelos de Letras, com 85,5% de eliminados. Dos universitários de Administração, 83,4% reprovaram. As melhores taxas — ainda que preocupantes — ficaram com os estudantes de Jornalismo (79,5%) e Engenharias (73,3%).

 

Para a professora da Escola da Indústria Criativa e do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Unisinos Dorotea Kersch, a tendência é de que o desempenho já ruim se torne ainda pior depois de dois anos de pandemia, diante do afastamento dos alunos das escolas e da dificuldade de acesso ao ensino remoto. No entanto, destaca que a forma como a Língua Portuguesa vem sendo trabalhada já era equivocada.

— Não é mais possível trabalhar a gramática pela gramática. Temos que inserir os alunos em práticas letradas que façam sentido para a vida deles e para o que eles se envolvem fora da escola. Hoje, muitas vezes, os alunos recebem uma educação fragmentada, que o aluno não consegue juntar quando vai para a vida real — pontua Dorotea.

A falta de tempo para correção e feedbacks faz com que os professores acabem não demandando tantas atividades de escrita, por exemplo, segundo a docente. Além disso, Dorotea ressalta que é importante que o aluno seja imerso em textos de diferentes gêneros, e que a escola valorize e faça a conexão entre as formas de escrita do estudante fora e dentro de sala de aula.

— Tu tens que chegar no coração do aluno e, para isso, tens que descobrir o que eles leem fora das aulas. Estudos sobre leitura mostram que o aluno lê, mas não aquilo que a escola quer. Muitos leem Harry Potter, por exemplo, ou escrevem fanfics (narrativas ficcionais escritas por fãs, utilizando o universo de algum personagem), e a escola não reconhece o letramento deles — alerta a educadora.

Professora adjunta do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Lilian Hubner ressalta que a lacuna no aprendizado da Língua Portuguesa já começa na infância, quando a criança não tem o contato adequado com a leitura.

— Não é só dar o livro. O adulto tem que pegar esse livro e ler com a criança, mostrar onde estão as palavras. Com isso, a criança vai introjetando o vocabulário — relata a docente.

Novas vestimentas

O problema maior é quando os pais não são letrados – são analfabetos ou analfabetos funcionais, por exemplo – e, somado a isso, a criança não frequenta a Educação Infantil, devido à falta de vagas. Esse estudante chega ao Ensino Fundamental praticamente sem nenhum contato com a língua escrita, o que lhe coloca, mesmo após ser alfabetizado, em uma desvantagem explicada por Lilian com uma metáfora:

— Podemos comparar a nossa linguagem com as roupas que temos no armário. Normalmente, temos um padrão de roupas que usamos no dia a dia, e o mesmo acontece com a linguagem. O papel da escola é mostrar ao estudante outros padrões, que são a língua culta. O professor tem que equipar o armário com mais “vestimentas”, para que o aluno saiba que não pode escrever para o diretor da escola ou o empregador da mesma forma que ele escreve para o amigo no WhatsApp.

Conforme a docente, muitas vezes, quem passa por processos seletivos como estes analisados na pesquisa não foi apresentado à forma de linguagem mais culta, mais padrão. Para esses alunos, um ensino focado nas exceções da Língua Portuguesa não resolve, uma vez que, antes disso, é preciso aprender a usar adequadamente o idioma.

— Às vezes, as pessoas não conseguem formular um raciocínio no papel, e é claro que isso vai acontecer: falta um vocabulário, uma estrutura, elas não sabem usar a pontuação, a concordância. Aí, as frases ficam extensas e a gente se perde no raciocínio — resume Lilian.

Para a professora da PUCRS, se a docência fosse valorizada, com a oferta de boas condições financeiras e apoio na criação de projetos pedagógicos, e houvesse a implementação de políticas públicas de incentivo à leitura, o problema seria atacado pela raiz e, com o tempo, a realidade poderia ser diferente.

Fernando Becker, doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, se impressiona quando percebe que pouco do que as psicologias do século 20 estudaram em termos de desenvolvimento de aprendizagem foi levado para a realidade das escolas, e que o ensino atual é muito semelhante ao oferecido nos anos 1950. Para o especialista, que também é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), essa falta de renovação tem muito a ver com os problemas de desempenho dos estudantes nos processos seletivos.

— É espantoso que a escola seja um elefante branco que se isole das transformações sociais e tenha tanta dificuldade de assimilar transformações e modificar o seu projeto de ensino. Os professores entram na sala de aula e começam a falar sem conhecer as condições de aprendizagem daqueles alunos. O que acontece é que grande parte não se conecta com o que está sendo passado — analisa Becker.

Significados

A primeira pergunta a ser feita, de acordo com o docente, é o que tem significado para aquelas crianças. A resposta será diferente conforme a classe social do aluno, a idade, a geolocalização e tantas outras variáveis. A partir disso, é preciso desafiar as inteligências dos estudantes e mantê-los ativos.

— A construção do conhecimento envolve atividade, e não passividade. Mas o que acontece em sala de aula? Em larga escala, a exigência da passividade. Tem que ficar quieto, em silêncio. Só que é falando que se organiza a vida e o conhecimento — orienta o professor, que considera que criar ambientes onde os alunos falem entre si e com os educadores é fundamental em qualquer disciplina.

Becker salienta que o letramento é uma revolução cerebral, e que, no caso do ensino da Língua Portuguesa, é lendo e escrevendo que se aprende a gramática, e não com aulas sobre regras gramaticais desligadas do sentido. Entretanto, mesmo ao se oferecer uma leitura para o estudante, é importante escolher bem qual será:

— O que faz sentido para um adolescente de 12 anos ler? As escolas vêm com Dom Casmurro, invariavelmente. Isso é dar saltos qualitativos que os alunos ainda não deram, e aí os professores falam com as paredes. Os alunos acabam pegando resumos do livro na internet e simplesmente não leem.

Histórias em quadrinhos, textos sobre dinossauros ou outros assuntos pelos quais a turma se interesse pode ser um bom ponto de partida. Dele, aos poucos, os professores podem desafiar seus alunos a ir além.

— A escola tem exatamente a função de desafiar, mas erra toda vez que começa de um lugar onde o aluno não está — pondera Becker.

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